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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Adolescentes são medicados ilegalmente

Um relatório do Conselho Federal de Psicologia mostrou que em pelo menos quatro estados do país medicamentos psicotrópicos são usados como forma de controle de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Estão na lista o Paraná, Minas Gerais, Piauí e o Rio Grande do Sul. Agora, a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced) está realizando um estudo aprofundado sobre a questão para o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Os pesquisadores detectaram que no Rio Grande do Sul cerca de 80% dos internos são medicados e que tanto os diagnósticos quanto os medicamentos receitados são idênticos, o que comprovaria o uso abusivo das substâncias por parte das instituições.

O Conselho Federal de Psicologia fez visitas às unidades de cumprimento de medidas socioeducativas em 22 estados há três anos. Entre as principais irregularidades estavam o uso indevido de medicamentos. A Anced decidiu montar um grupo de trabalho para investigar o assunto com mais precisão, já que o relatório não aponta a frequência do uso dos medicamentos nem a quantidade de jovens submetidos a esses procedimentos. O estado piloto é o Rio Grande do Sul, onde informações preliminares fornecidas pelas instituições confirmam a medicalização excessiva. O estudo completo será apresentado em conjunto com outros casos de violações de direitos, como o da menina paraense que ficou presa em uma cela com vários homens.

Relatório aponta mais violações

O relatório do Conselho Federal de Psicologia aponta ainda outras graves violações de direitos humanos. Em quase 60% das unidades visitadas os jovens relataram espancamentos. Alguns tinham ainda hematomas e cortes no corpo. No Paraná não houve esse tipo de denúncia. Apesar disso, o estado aparece no documento como um dos que não incentiva a escolarização e a profissionalização dos adolescentes.

A inspeção constatou também superlotação, falta de condições adequadas de higiene e uma espécie de “solitária” para os mal comportados. Quase todas as unidades se assemelham a prisões. Em relação à saúde, são relatados casos em que os jovens ficam quase 10 dias sem tomar banho e sem trocar de roupas. O relatório faz uma série de recomendações aos governos estaduais e federal e pede que o Ministério Público aja com mais eficácia no combate a essas violações. (PC)

A Secretaria de Estado da Criança e da Juventude do Paraná refuta as informações do relatório. O relatório do Conselho de Psicologia foi elaborado a partir de uma visita que entidades da sociedade civil fizeram a dois locais no estado. O primeiro foi o Centro de Socioeducação (Cense) São Francisco e o segundo, o antigo Ciaadi, hoje chamado de Cense Curitiba. O relatório aponta casos de medicalização no Cense Curitiba. Mas não especifica quais seriam as substâncias, nem a frequência com que os medicamentos são usados, nem o número de jovens medicados. O coordenador de socioeducação da secretaria, Roberto Bassan, argumenta que todos os procedimentos realizados dentro das instituições têm a supervisão de médicos responsáveis. Depois da prescrição, um educador fica responsável por acompanhar os horários de tomada dos remédios.

Quando há indicação médica de que um jovem precisa de um tratamento específico, seja por problemas relacionados à saúde mental ou por uso de drogas, ele é encaminhado para a rede do Sistema Único de Saúde. Além disso, Bassan afirma que, em grande parte das unidades, também há médicos contratados pelo estado.

Apesar de o Paraná ser apontado no estudo como um dos locais onde ocorre o uso de medicamentos para controle dos jovens, a presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil seção Paraná, Márcia Caldas, afirma que o estado está avançando nessa área. Hoje, as unidades socioeducativas paranaenses estão entre as poucas no país de acordo com as novas regras do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que preveem, por exemplo, mudança na arquitetura e um número máximo de jovens por instituição.

“Concordamos que o uso da medicação seja feito, desde que recomendado por um médico. Há casos em que isso é necessário. Se ocorrer de forma indiscriminada, é considerado uma violação de direitos”, explica. “O Paraná é um estado de ponta quando se fala em medidas socioeducativas. Ainda há muito pela frente, mas já temos avanços”.

Método fere estatuto

Advogado especialista em Direitos Humanos e presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, Carlos Nicodemos diz que há três categorias principais de uso da medicação de forma irregular. A primeira é quando os educadores usam os medicamentos por decisão própria. A segunda é quando a direção das unidades autoriza o uso das substâncias de forma generalizada, quando há uma grande movimentação ou agitação dos internos. E, por fim, quando médicos fazem laudos e receitam a medicação indiscriminadamente. Ele relata que no Rio Grande do Sul, por exemplo, ao se avaliar as fichas médicas dos garotos, percebe-se que os médicos dão exatamente o mesmo diagnóstico e o mesmo remédio para a maioria. “Como pode haver o mesmo problema com todos os jovens? É somente uma forma de controle”.

Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Maria Luiza Moura Oliveira argumenta que esses procedimentos ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente porque o atendimento aos jovens deveria ser individualizado. Isso faz parte do processo de socioeducação. Quando isso não ocorre, quem sai perdendo é a própria sociedade, porque se tira do adolescente a possibilidade de mudança. “Para qualquer adulto esses remédios são danosos. Os efeitos colaterais, tanto biológicos quanto emocionais, são muito grandes”. Ela lembra que em muitas unidades prisionais para adultos a contenção química também é usada.

O ideal nos casos em que os adolescentes têm problemas de saúde mental ou uso abusivo de drogas é que o atendimento ocorra na rede do Sistema Único de Saúde. Essa é a opinião da coordenadora do grupo de trabalho da Anced que investiga as denúncias no Rio Grande do Sul, a advogada Ana Celina Hamoy. “O Ministério da Saúde oferece uma série de alternativas, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps)”. Ela diz que os jovens podem ser encaminhados para esses espaços durante o dia, onde podem ter acesso a médicos especializados no assunto, e retornar para as unidades à noite. (PC)

Exemplo de São Paulo preocupa

Outra situação que preocupa os integrantes da Anced é a criação da Unidade Experimental de Saúde (UES), localizada em São Paulo. O local foi inaugurado há três anos pelo governo do estado com o objetivo de atender adolescentes e jovens com problemas relacionados à saúde mental. Todos os seis rapazes que vivem lá hoje são egressos da Fundação Casa (antiga Febem) e têm mais de 18 anos.

A discussão sobre a UES começou em função de Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha. Em 2003 ele assassinou e violentou a estudante Liana Friedenbach, de 16 anos, e participou do sequestro e da morte do namorado da garota, Felipe Caffé, de 19 anos. Na época, Champinha tinha a mesma idade de Liana e, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, poderia ficar privado de liberdade por no máximo três anos. Quando esse prazo estava chegando ao limite, o Ministério Público entrou com um recurso para que o jovem permanecesse internado até os 21 anos. Perto da data de saída, o Ministério Público entrou com um pedido de interdição civil para que Champinha não fosse posto em liberdade.

O que a Anced discute é que, com a Reforma Psiquiátrica, a internação compulsória deve ser feita somente em último caso. Hoje, o tratamento para pessoas com problemas de saúde mental deve ser feito na rede pública por meio dos Caps. Os pacientes têm atendimento com psiquiatras, psicólogos e outros especialistas. Somente nas crises ocorre a internação. Para integrantes da Associação, os jovens da UES estão em um limbo jurídico. “Quem está internado fica submetido a uma alta médica. E, no caso desses rapazes, quem decide é o Judiciário. Não podemos prever que alguém cometerá um novo crime. A ciência não faz este tipo de previsão”, diz Fernanda Lavarello, da Anced. (PC)
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Fonte: Gazeta do Povo

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